Somos todos do teatro

Em 1996, minha família morava numa casa no centro da cidade, do lado da farmácia onde meu pai até hoje trabalha. Era uma casa velha, com teto de madeira carunchada. Tinha um quarto só e, por isso, passei boa parte da minha infância dormindo no mesmo quarto que meus pais. Eu estudava na Escola Padre Donizetti, que era pertinho de casa. Ia todo dia a pé pra escola. Passava no mercado Abackerli, que era na mesma rua e até hoje continua no mesmo lugar, comprava um Fandangos e um chocolate pro recreio, e ia estudar. Meus amigos estavam sempre em casa. Meu pai pagava sorvete pra nós quase todo dia, já que a sorveteria era muito próxima da minha casa. Todo dia a noite saía de bicicleta pra pedalar na praça. Ficava dando voltas no quarteirão, e sempre parava na locadora Fox Vídeo pra ver as prateleiras. Foi lá que um dia roubaram minha bicicleta. No mês de outubro na minha rua, a Dr. Alfredo Guedes, tinha a Festa da Amizade. Eu adorava. Estão aí grandes lembranças de brincadeiras e comilanças da infância. Meu pai nessa época já tinha um fusquinha, mas na nossa casa não tinha garagem. Ele guardava o carro na oficina do Seu Mauri Rocco, pai do Paulo Rogério, que fica nos fundos da casa dele. Seu Mauri alugava a oficina para guardar carros dos moradores da região que não tinham garagem em casa. Numa noite, quando meu pai guardava o carro, vi o grupo de teatro que o Paulo dirigia na época ensaiando na garagem. Era o Grupo Curtura que ensaiava, se não me engano, a peça "Seis Personagens a Procura de um Autor". Os atores usavam roupas bonitas, falavam alto e eram enormes aos meus olhos de criança. Ficava admirado e olhava tímido, com a cabeça baixa. Não devia entender nada mas gostava muito do que via. Isso aconteceu durante várias noites. Em uma delas, meus pais e eu ficamos mais tempo e assistimos algumas cenas a mais. Meu pai então começou a perceber meu interesse e conversou com o Paulo, que me convidou para entrar para a Escola Municipal de Teatro, que ele também dirigia com o apoio da Prefeitura. Mas a vergonha e o receio me seguraram ainda durante 2 anos. Em 1998, ainda morava no centro e numa noite, fui com amigas minhas até o Centro Cultural, onde Paulo ensaiava. Começava ali minha história no teatro.
Apresentamos naquele ano o musical "Casa de Brinquedos". No começo dos ensaios, fiquei tímido sim, receoso, mas fui me soltando, até que comprei o cd com as músicas da peça e numa tarde na casa de uma amiga minha, montei a coreografia da "Bicicleta". Cheguei no ensaio naquela noite e disse pro Paulo que tinha algo pra mostrar pra ele. Foi só a primeira. Algumas coreografias da peça fui eu que montei. Eram simples, infantis, mas me orgulhava tanto delas. No ano seguinte, veio mais um musical, dessa vez, "A Arca de Noé". No cartaz da peça, em vermelho, vinha escrito "Coreografias de José Ono Junior". Eu tinha 14 anos e não tinha noção do tamanho disso.
Nessa época, o Grupo Curtura continuava seus projetos. As peças eram mais bem produzidas, tinham figurinos especiais, iluminação, e uma estrutura bem diferentes das pecinhas que a gente fazia na Escolinha de teatro. Eu assisti "Uma Serpente no Seio de Roma" e pensei que um dia iria conseguir chegar ali, trabalhar naquele grupo, com aqueles atores e aí sim eu seria importante.
Minha trajetória no teatro continuou. Em 2001, montamos "Tribobó City". Fiz o "El Mexicano", até hoje um dos personagens que mais gostei de fazer. Numa apresentação para a escola Alfredo Guedes, lembro das crianças correndo atrás de mim nos fundos do Centro Cultural e gritando "los indios, los indios" e pedindo autógrafo hehe. Foram meses andando pela cidade e ouvindo gente gritando o bordão do Mexicano. Em 2002, fizemos leituras de uma peça de Domingos de Oliveira, "Somos Todos do Jardim da Infância". Adorei o texto e gostei logo de cara do personagem "Felipe". Mas a peça não aconteceu. A escolhida foi um clássico de Molière, "O Médico a Força". Nunca vi um público rir tanto quanto nessa peça. Era gargalhada do começo ao fim. Mutreta e eu éramos uma dupla infalível nessa época, mesmo vivendo às turras. Era ego demais num grupo só.Logo depois, um novo desafio, "Édipo Rei", tragédia grega de Sophocles. Fazia o "Tirésias". Usava uma maquiagem pesada. Raspei a sobrancelha e o cabelo. Tirésias era cego e da boca dele saía a perdição de Édipo. Com essa peça, encarei meu primeiro festival de Teatro, em Pirassununga, o que não foi uma experiência boa. Era importante demais pra mim e o nervosismo já me tirava do sério.
No ano seguinte, veio minha primeira apresentação como "Herodes", na Paixão de Cristo.
Mas a mais elogiada foi a de 2004, quando Paulo dirigiu "Inri - Pietá". Até hoje ele diz que foi minha melhor atuação, que nunca me viu tão bem em cena. Eu já estava em São Paulo, cursava o curso profissionalizante de ator no Teatro-Escola Célia Helena. Morava sozinho numa kitnet da Alameda Santos, perto da Avenida Paulista. Meu pai pagava a escola pra mim. Ele não gostou muito da ideia quando soube que queria me formar como ator. É uma profissão difícil, instável, e bem concorrida. Mesmo contrariado, querendo que eu cursasse Medicina ou Farmácia, meu pai sempre me apoiou. Em 2005, apresentava a peça "Portobello Circus" em São Paulo, no Teatro Célia Helena. O camarim do teatro ficava em cima do palco, e de lá de cima, se via a plateia atrás da cortina preta. Meus pais estavam em São Paulo. Era a minha primeira peça que eles iriam assistir em São Paulo. Puxei a cortina preta e vi os dois sentadinhos, no meio de toda aquela gente bacana, encantados com o teatro e ansiosos para me verem em cena. Eu usava uma maquiagem toda branca, era o dono do circo na peça. Naquele momento, não resisti à emoção e derreti um bocado dela. Queria que meu pai se orgulhasse e visse que seu esforço para me manter em São Paulo não era em vão, que a minha alma era de artista e se não fosse assim, eu não seria nada. Foi a primeira vez que encontrei meus pais com os olhos marejados depois de me verem atuar. Ali, naquela noite, tive a certeza que estava no caminho certo.
Passei 5 anos em São Paulo, 3 deles estudando. Fiz várias peças com a escola e uma profissional apresentada durante 3 meses no Espaço dos Satyros. Participei de muitos testes, fiz teste até na Globo hehe, atuei num curta-metragem, muita história que nem caberia aqui agora. Trabalhei com telemarketing também durante um tempo, e passei também muito tempo como ator desempregado. Cresci muito como pessoa durante esses 5 anos. Me apaixonei muitas vezes, quebrei muito a cara, vi meus sonhos surgirem e escoarem pelo ralo várias vezes. Durante esse tempo, ainda fiz alguns trabalhos com o Paulo. Ministrei alguns laboratórios com os atores e participei do grande sucesso do Curtura, "A Gaiola das Loucas". Em 2008, voltei para Tambaú.
Estava perdido, com uma mão na frente e outra atrás, sem amigos, sem nada.
Todo mundo estava fora, fazendo a vida. Pra mim, eram vários passos pra trás. Paulo então me chamou para acompanhar o ensaio de "O Príncipe da Quermesse". Foi quando conheci os atores e o novo grupo que tinha se formado enquanto estava fora. Li o texto, ouvi as músicas e as ideias começaram a surgir. Com a permissão do Paulo, comecei a mexer na peça. Fiz muitas coreografias e o espetáculo depois de 2 meses de trabalho, ficou pronta. A peça foi um sucesso. Tivemos um público ótimo durante as 3 apresentações e todo mundo saiu satisfeitíssimo. Na última apresentação, quietinho, na última cadeira da plateia, me emocionei muito. Teatro é minha vida e ele estava presente novamente nela. Ver os garotos trabalhando, curtindo o que eu curtia quando tinha 13, 14 anos, foi tocante. Demorei um tempo para entender que Deus escreve certo por linhas tortas. Quis a vida toda trabalhar com teatro, e estava. Num lugar diferente e de uma forma diferente, mas estava vivendo de arte.
Em 2009, o teatro se fez ainda mais presente. Passei em um concurso da prefeitura e dei aulas de teatro nas escolas durante 6 meses, até quando o projeto acabou. Na SAT, continuei trabalhando com o Paulo, assumindo maiores responsabilidades. Foi sofrível no começo. Tinha medo, me sentia despreparado. Me formei como ator, e não como diretor, e a ideia de aprender assim, na raça, me assustava demais. Fui me adaptando aos poucos ao grupo, ganhando intimidade, me soltando, e o medo foi passando. Nesse ano, dirigi junto com o Paulo a peça "Tribobó City", a mesma que atuei em 2001. A peça foi bem musical e agradou muito as crianças que prestigiaram. Além dessa, também me apresentei com "Confissões de Adolescente", onde contracenei com as meninas do grupo. Era pai delas, foi uma experiência ótima.
Em 2010, o trabalho na Quintal das Artes seguiu em frente. No início do ano, surgiu "Sexo dos Anjos". Lembrei daquele antigo sonho de atuar no Grupo Curtura. Já tinha passado por ele, umas 3 vezes antes, mas essa foi especial, o melhor texto que já encenei. Tenho recordações dos ensaios, das apresentações, muito vivas dentro de mim. Foi tudo muito forte e essa peça nos orgulha muito. Além de trabalhar na biblioteca, as aulas no grupo de teatro continuaram. Um dia, Paulo me questionou sobre a peça que faríamos nesse ano. Me lembrei de "Somos Todos do Jardim da Infância", do quanto que gostava do texto. Sugeri que transformássemos
a peça num musical. Paulo topou na hora. Até estranhei, mas nem disse nada. Dividimos o grupo e começamos os ensaios, além do musical, da "Casa de Brinquedos" também. Num dia de extremo cansaço, de fadiga mesmo, estava de saco cheio, estressado, e num rompante, disse para o Paulo que pensava em sair fora do teatro. Ele foi enfático: "se você for sair, precisa me avisar logo, pois estava pensando em deixar a direção do 'Jardim da Infância' com você". Paulo me conhece muito bem e sabia que isso iria fazer com que mudasse de ideia. Minha cabeça deu um nó. Travei. Não ia nem frente, nem pra trás. As ideias não saíam. Foram noites de difíceis ensaios, a passos de tartaruga, e cada vez mais, me sentia culpado, frustrado. Numa noite dessas, resolvi que isso não me dominar mais. Criei vergonha na cara e comecei a trabalhar, mostrar tudo que sei. A peça começou a aparecer. Isso empolgou Paulo também, que me ajudou bastante nos equívocos que eu cometi no meio do caminho. Os ensaios se intensificaram. Era "ou vai, ou racha". E foi. A divulgação começou, as coreografias foram ficando prontas, os figurinos aparecendo, e o trabalhando ganhando forma.
Dia 25 de novembro de 2010! Chegou o dia da estreia. Vivi dias muito difíceis em 2010, com muitas perdas e desilusões, como acontece com todo mundo. Ainda é hora de crescer. Tem dia que acordo e vejo que não sei nada da vida, nem de mim. Os últimos dias foram de bomba-relógio. Pensei em alguns momentos que iria explodir. No dia da estreia, saí mais cedo da biblioteca. Fui pra casa, dormi bastante. Acordei muito nervoso, deprimido. Me tranquei no quarto, liguei o som. Cantei, cantei muito. Alegria, alegria; Soy loco por ti America, I want to hold your hand, Call me, Hey Jude... Me acalmei. Pensei em tanta coisa. também não caberia aqui. Coração estava em frangalhos, sem força, batendo ora rápido, ora devagar. Na SAT, andei de um lado para o outro. Todos estavam nervosos, a sua maneira. A peça começou. Meus pais estavam na plateia, e tivemos um público muito bom nessa noite. A voz do José Eli narrando as falas do autor veio primeiro. Logo depois, "We go together", do filme Grease, que sempre me encheu os olhos. E aí foi... Os meninos na sala de aula, tomando sorvete na Milka, dançando Elvis com as meninas na festinha. Veio a triste cena de desamor com Isabelle e Gabriel, sensibilizando. Depois, o xodó "Biquini de bolinha amarelinho" com as queridas Camila e Carolzinha, segurando as revistas Cláudia, tão coloridas e ousadas. "O bom" Neto fez graça no cinema, e depois do beijo, veio o tapa com o "Splish Splash". Os hilários Marco Antonio e Tales tomando um tenso café desigual, procurando solução para aqueles problemas tào complexos. O baile de formatura funcionou como panela de pressão para aqueles personagens. Claudinha surgiu, com nome de flor, trazendo beleza e perfume. Juliano tentando ganhar o primeiro beijo para seu personagem, mas o tiro saiu pela culatra, com o soco que levou do cadete, namorado da Norma. Veio a hora do "Rock around the clock", logo depois, a descoberta do amor com "Can't take my eyes off of you". Ane Caroline, nossa grande Carol, surgiu de vestido vermelho na frente da lua, que era poste. A tensão do vestibular com os delírios de "Get Back", dos Beatles, que apareceram bastante no espetáculo com "Hey Jude", "Let it Be", "Yesterday" e "I want to hold your hand", que relembrou os momentos dessa turma para plateia numa mistura de cinema e teatro.
O brinde findou. E a turma se calou. O Artur, do Rodrigo, tombou junto com o Brasil. E a peça enfim ganhou tons em preto-e-branco. Começava o período negro que nos libertaria só no ano em que nasci. A cor voltou. Veio o carnaval e aqueles queridos amigos cantaram: "eu te amo, meu Brasil, eu te amo". Os aplausos vieram. Plateia em delírio. Paulo emocionado, com os olhos marejados. Eu não estava diferente. A noite seguinte foi mais especial. Mais público, mais aplausos e a peça mais redondinha. Tudo saiu como queríamos. Meus pais me cumprimentaram no final e eu vi, novamente, meu pai com os olhos vermelhos de emoção, orgulhoso de mim.
Minha sensação é de que poderia ter trabalhado mais, ter deixado tanto de insegurança, e ter caído de cabeça na peça mais cedo, mas Deus entra de novo na história, e Ele sabe o que faz. O trabalho está aí, cumprido, e todos nós somos do jardim da infância, na hora de comemorar nossos êxitos. A arte liberta, conforta, nos inspira, nos faz crescer, compreender, aguentar. E eu rezo pra que ela esteja comigo, em minha vida, até o último dia, e que esse seja sempre o meu caminho.
Hoje ainda temos espetáculo, a última apresentação. E a noite ainda guarda muitas surpresas e muita emoção pra todos nós. E a nossa história nesse riacho da vida continua...

"Estou aqui de passagem. Sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício, num precipício de luzes, entre saudades, soluços. Eu vou morrer de bruços, nos braços, nos olhos, nos braços de uma mulher. Mais apaixonado ainda, dentro dos braços da camponesa, guerrilheira, manequim, ai de mim, nos braços de quem me queira."

"Eu vou, por entre fotos e nomes, os olhos cheios de cores, o peito cheio de amores vãos. Eu vou, por que não?"

3 comentários:

Fênix Manca disse...

Zé, ficou muito bacana, os meninos capricharam, é muito interessante a gente ver os talentos e as inclinações desabrochando... Cara, o que é a Carol, boa, mas boa pa caceta, a Matilde saiu da Carol, a Matilde foi a personagem feminina com mais identidade própria... ah, caralho, sei lá se tou me fazendo entender, mas é isso, hahahah!!! Gostei pa caramba e penso cada vez mais em dar uma surtada com esse povo daqui de casa e voltar ao teatro... Cê munto de parabéns, viu!!!

Amar sem sofrer na Adolescência disse...

Adorei o texto e as fotos tão expressivos. Tenho uma paixão ardente pelo teatro. Escrevo peças para participar desta linda e rica ousadia.
bjs

Paulo Rogério Rocco disse...

Estou orgulhoso não só de ver como o menino "avião" da Casa de Brinquedos, que nos olhava acanhado na oficina "quintal das Artes" do meu pai, tornou-se um grande ator, um ótimo diretor e um amigo para sempre, além do Jardim da Infância. Parabéns, José.