Jogos mortais

Hoje é quarta-feira. A semana está na metade e, pra mim, é como se tivessem passado duas. Estamos no fim de setembro e as responsabilidades vão aumentando, responsabilidades no meu trabalho, e a de fazer por onde para chegar no fim do ano e dizer que 2010 foi um ano bom, responsabilidade de viver lances que valham a pena e que mereçam ser lembrados. Quase não tenho tido tempo livre. Quando tenho, é escrevendo, dormindo ou com os amigos arranjando mais problemas para o caos que a minha vida às vezes se transforma. A Quintal das Artes está produzindo 2 peças, onde Paulo e eu estamos trabalhando juntos. "Casa de Brinquedos" vem funcionando. Penso nas coreografias e, quase que instintivamente, elas surgem, brotam. Tenho uma certa familiaridade com a peça. Foi o primeiro espetáculo que participei, em 1998, quando tinha 13 anos e entrei para a Escola Municipal de Teatro, que era dirigida pelo Paulo. O trabalho flui na "Casa de Brinquedos". A outra peça, "Somos Todos do Jardim da Infância", vem me tirando o sono. Tenho bloqueios criativos. Meu cérebro pifa. Eu penso, penso e não sai nada. Uma hora passa. Tudo volta ao normal e as ideias aparecem. Já passei por isso outras vezes, sempre que alguma responsabilidade muito grande caiu no meu colo. Esses bloqueios não têm data marcada para irem embora, e a espera pela partida deles é angustiante. Hoje então, tudo está mais evidente. Foi marcado excepcionalmente ensaio, já que, quinta-feira, nosso espaço físico, a SAT, estará ocupado. Não sei como será a noite de hoje. Bom, a de ontem, tinha tudo pra não dar em nada, mas acabou em dor de cabeça.
O ensaio da "Casa de Brinquedos" foi produtivo. Uma nova coreografia foi ensaiada, e os meninos se apresentaram cantando "Aquarela", do Toquinho, num número musical que provavelmente entrará no espetáculo. Depois do ensaio, o destino foi o posto. Lis, Alan, Che e eu, subimos. Lá encontramos o Neno e a Edna, irmã dele, que é um amor de pessoa. Éder apareceu de moto por lá, tinha acabado de sair do trabalho. Leandro e Joãozinho, que completou 30 anos nessa semana, apareceram também. Paguei um pau pra camisa dos Stones que o João estava usando. Primeira atividade da noite foi um inocente jogo de UNO, como sempre fazemos. Mais cedo, na manhã desse mesmo dia, Alan apareceu na biblioteca. Che não estava porque foi fazer uns exames. Papo vai, papo vem, no meio dos certificados do Projeto Agosto Folclórico que estava imprimindo para as escolas, Alan iniciou um DR comigo. Sim, ele estava chateado porque, segundo ele, nossa amizade não é mais a mesma. Disse que não me importo com ele, que não faço questão da sua presença, que não converso com ele para saber dos seus problemas. Ele é ariano como eu e, desse assunto, eu entendo muito bem. Não acredito em horóscopo de jornal, de revista. Acredito nos signos e no quanto que a lua interfere nosso estado de espírito e comportamento. Quem nunca se sentiu diferente e/ou viveu uma situação atípica numa noite de lua cheia? "Vamos cantar o blues da piedade pra quem não muda quando é lua cheia". O fato é que muita água passou nesse riacho antes dessas histórias melancólicas e sem sentido que vocês acompanham aqui, meus queridos. Já falei aqui de quando conheci o Alan e o Che. Éramos inseparáveis, fazíamos tudo juntos, saíamos todos os dias. Foram madrugadas e madrugadas na rua falando sobre o tudo e não dizendo nada. Mas a vida não ia se resumir só a isso pra sempre. O tempo vai passando, outras pessoas vão cruzando nosso caminho. Nossa visão e a forma de encarar as relações vai mudando. Gosto muito do Alan, sinto sua falta quando saímos e ele não aparece. Nunca esqueci o quanto que ele e o Che me ajudaram num dos momentos mais difíceis que já vivi, que foi meu retorno para Tambaú. Sempre fui um pouco cruel com ele. Acho que sou um pouco cruel com todos os meus amigos. Essa crueldade nada mais é que a minha completa sinceridade com eles. Amigo serve pra isso mesmo, pra abrir nossos olhos, pra compartilhar alegrias e tristezas, e dúvidas. O Alan nunca entendeu isso e me vê como um cara de gênio forte e difícil. Nós somos muito parecidos. Enfrentamos dificuldades parecidas na infância, somos observadores e adoramos dar tapa com luva de pelica, numa forma de carinho e preocupação.
Bom, ontem a noite, ele me disse que pensou em tudo que conversamos na biblioteca e que viu que tenho razão. Tudo está bem. Nada me tira da cabeça que isso foi coisa do Che, que hoje negou tudo, mas enfim. Depois do UNO, com a quantidade boa de pessoas reunidas, eles resolveram jogar "Ladrão e cidadão". Sempre tivemos problemas com esse jogo. Tivemos brigas feias em outras épocas por causa dele. Lislaine sempre tentou apaziguar as situações. Ontem, nessa hora, ela já tinha ido embora. É um jogo onde se usa o poder de persuasão, grandes blefes e o próprio argumento verdadeiro. Alan, Che e eu sempre levamos o jogo muito a sério. Eles podem até dizer que não, mas, pra nós, ganhar "Ladrão e cidadão" um do outro, virou uma questão de honra. Alan e eu somos bons na persuasão e usamos também um tanto de teatro nas nossas argumentações. Che já abusa da malandragem e das caras e bocas.
Começamos o jogo. Cinco cidadãos e três ladrões na jogada! O primeiro a sair foi o Neno: cidadão! A segunda vítima votada pela maioria, Leandro: cidadão! Eram 3 ladrões contra 3 cidadãos agora. Nessa hora, minha desconfiança era do Che, por causa da mudança repentina de voto e pelos olhares sacanas. Já tinha desconfiado também da Edna e do Éder, que lançavam sorrisinhos sarcásticos. O Joãozinho, eu tinha certeza que não era ladrão. A maioria foi no Che: BINGO! Achamos o primeiro ladrão. Para os cidadãos ganharem, faltava achar um ladrão, mas aí já estava meio óbvio. Che e Alan não votaram um no outro nenhuma vez. Eu, Edna e Éder fomos no Alan. GAME OVER! Achamos o segundo ladrão. E ele matou o jogo entregando o terceiro, pasmem, Joãozinho. Aí foi só alegria. Vibrei, comemorei muito, fiquei hiper feliz. Parecia final de Copa do Mundo. Ganhar do Alan e do Che nesse jogo, como dois ladrões na jogada, é motivo de comemoração mesmo. Os caras são feras nesse jogo e, sempre que puderam, se uniram contra mim na hora da argumentação. Ah, comemorei mesmo, como eles já fizeram várias vezes quando se saíram bem no final de outras rodadas em outros tempos. O Che não gostou muito. Quando ele se irrita, sai dizendo coisas sem pensar, e não consegue separar o que é sério e o que é brincadeira. Poxa, eu convivo com ele há bastante tempo, e hoje, durante boa parte do dia. Então, acho que sei diferenciar quando está tudo bem e quando há algo estranho acontecendo. Somos muito próximos e algumas atitudes ganham uma proporção enorme, pro bem ou pro mal. Temos sorte com o fato de que tudo se resolve logo. A gente conversa e se acerta. A amizade e o respeito falam sempre mais alto, mas segurar a onda desses altos e baixos é sempre muito difícil. Não podemos prever o tamanho do conflito antes dele acontecer, e o tamanho da rachadura que ele vai causar.
Nosso final de semana foi divertido. No sábado a noite, Che, Lis e eu fomos para um sítio, onde toda família do meu pai se reuniu para comemorar o aniversário de uma prima minha, a Naiara. Revi muita gente que há muito tempo não via. Foram com esses primos que, na minha infância, eu rolei na terra, brinquei no barro, pulei fogueira, cacei vagalume, andei a cavalo, bebi leite da vaca tirado na hora, com o copo cheio de achocolatado e açúcar. Foi com eles que fui mais moleque. Alguns eu nem lembro mais o nome, eram tantos, mas foi nostálgico. A Lis, o Che e eu dormimos lá. Três da manhã, quando todos os convidados que não iam dormir lá, já tinham ido embora, ficamos sentados numa mesa, debaixo de sereno, ao som de rock no celular. Um dia, eu tive alguém importantíssimo em minha vida, alguém que dizia que ia estar comigo pra sempre. Nós nunca íamos nos abandonar, éramos fatalmente inseparáveis. Mas o destino não cumpriu a promessa e todas aquelas palavras e declarações viraram pó no vento. "O mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos tão mesquinhos". Tem vez em que a culpa é nossa, do nosso egoísmo, nosso orgulho e da imbecibilidade de acharmos que somos insubstituíveis. Naquela noite, depois de conversarmos sobre esse assunto, entramos no quarto para tentarmos dormir. E quem disse que conseguimos? Foi um tal de dar travesseirada na Lis, "montinho" no Che. E conta história de terror, coloca música no celular e puxa o outro pelo pé, e conversa, e fala, fala sobre religião. Conseguimos dormir com o dia já amanhecendo. Depois, umas dez e meia da manhã, acordamos. Aí era só esperar o almoço, a cochilada necessária logo após, um futebolzinho tímido no campo, uma caminhada com algumas fotos, para irmos embora. A noite, mesmo exausto, pregado, eu saí com a turma. Umas duas ou três horas no Mancha, e descemos. Saímos de lá quando começou a tocar Beatles. Droga! Na esquina de casa, o clima deixou claro que não há só uma dupla de amigos em crise por esse reino. Leandro e Éder tiveram a sua DR, mas dessa vez, fui só espectador. Pouco se falou, mas exatamente o silêncio que foi crucial na hora de buscar certas respostas. Tudo acaba passando, mais cedo ou mais tarde, até o dia que não passar mais nada. o dia em que as águas desse riacho irão correr pra outra direção.

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