O meu quintal

A primavera chegou e trouxe a chuva com ela. A noite de quinta-feira foi chuvosa, e de folga. O ensaio de teatro foi uma noite antes. Aliás, correu tudo bem. Avançamos alguns passos. Meu bloqueio criativo dá sinais de desaparecimento. Os últimos dias tinham sido bem tensos,
complicados e demorados, aqueles dias que você não tem vontade de sair da cama e não quer ver a cara de ninguém, dias de ressaca moral, de arrependimento de ter dito o que não devia e pra quem menos deveria ouvir. Por isso, prometi pra mim mesmo que o final de semana seria bom. Antes dele começar, na sexta a tarde, Che e eu demos uma escapada da biblioteca, debaixo de chuva, e fomos visitar a feira do Meio Ambiente, no Salão Paroquial, promovida pelo Setor de Educação juntamente com as escolas municipais daqui de Tambaú. Exposições de reciclagem, historinhas de conscientização ambiental e teatrinho com as crianças! Na biblioteca, a frequência foi pequena. Dia de chuva é assim mesmo. Saí de lá às 5 com uma garoa e um sorriso no rosto porque a semana tinha acabado.
Saí a noite mais cedo do que de costume. Combinei de ir com a turma na abertura dos Jogos da Primavera, que é tradição aqui na cidade. Os alunos da escola Padre Donizetti, uma das mais antigas e importantes de Tambaú, são divididos em bandeiras, nas cores branca, azul, amarela e verde, e participam de campeonatos de várias modalidades de esporte. Passei quase toda minha vida na escola Padre Donizetti. Estudei lá desde o pré até a oitava série. Participei de muitos Jogos da Primavera. Na maioria, fui das bandeiras azul e verde, as que eu mais gostava. Jogar mesmo que é bom, nada. Só fiquei na torcida. Era uma semana que não tínhamos aula. A Lis nesse ano, está na bandeira branca. Ela estava lá no Ginásio de Esportes sexta-feira, representando a bandeira. Muitos alunos do teatro que estudam no Padre Donizetti, também compareceram. Ane e Isabelle são candidatas a Rainha dos Jogos da Primavera, premiação que ocorre na próxima semana. Carol e Caio são capitães da bandeira amarela. Bom, Che foi comigo na abertura. Nos encontramos na porta. A chuva continuava, mansa. Uma das minhas promessas para o final de semana era exatamente consertar o que não estava certo na minha relação com os meus amigos, arrumar o que estava estremecido. Era certo que eu não iria conseguir nada sozinho, sem a ajuda e a boa vontade deles se acertarem comigo também. Saímos do evento, Che, Lis e eu, debaixo de chuva, e sem muito destino. Passamos na praça, pensamos em ir no Deoclides, mas a chuva atrapalhava os planos. Mais cedo, quando ia para o ginásio, eu encontrei o Alan na frente do Santuário, onde ele trabalhava na quermesse. Nos falamos cordialmente e combinamos de nos falarmos mais tarde. Na falta de lugar pra irmos, decidimos ir na quermesse. Che não se animou muito, mas foi com a gente. Chegando quase lá, encontramos Éder que se juntou a nós. Na quermesse quase vazia, a pedida foi um pastel e uma cerveja. Pastel de quermesse só não é melhor que o pastel do japonês, da lanchonete da Paulista, onde comia todo domingo de manhã. Era sempre pastel de calabresa, e depois um quibe. Para beber, coca-cola. A noite estava agradável. Sentia que o clima estava bom entre nós. Eu precisava recuperar aquilo que era nítido que tínhamos perdido nos últimos dias, a agradabilidade e a fluência de estarmos juntos. Tudo corria bem até Alan se juntar a mesa conosco, e a velha rusga que existe no relacionamento dele com Éder, aparecer. Sim, Alan falou demais e acabou respingando em mim. Me senti um grande idiota, por estar ali, por ter ficado feliz de termos nos juntado a ele essa noite. E ele é assim, quando a bomba estoura, ele sai fora, pra depois aparecer com cara de cachorro sem dono como se nada tivesse acontecido. Dito e feito, ele saiu para tirar as toalhas das mesas, na quermesse que já estava no fim. E foi o fim pra nós também, que fomos rumo a praça. Ah, eu sou um cara que não frequenta missas, que bebe todo final de semana, que fuma compulsivamente, que tem ataques exagerados e comete sincericídios, sou ciumento, grudento, tenho amores impossíveis, platônicos, mal-resolvidos, mal-acabados e a distância, e sofro por cada um deles, falo palavrão, ah e o inferno me espera. Bla bla bla... Che tentou conversar comigo sobre o ocorrido, mas eu evitei, sei lá porque, talvez porque não queria estragar o clima que, pelo menos entre nós, estava bom, conversando sobre um assunto difícil e sem muitas respostas, que é a forma como o Alan trata todos nós. O fim da noite meio silenciosa foi no Mancha, de frente pra praça que, a essa hora, estava deserta.
No sábado, minha família se reuniu no casamento de minha prima, Andresa. Ela é filha de um tio meu, irmão da minha mãe, já falecido. Meus tios, meus primos, até os de Campinas, todos reunidos. O casamento foi na Igreja Santo Antonio que, pra mim, é a mais bonita da cidade. Minha prima sempre foi muito bonita, doce, carinhosa, inteligente, e, na minha infância, fui muito apegado a ela e ao irmão dela, Juninho, que é meu padrinho. A emoção tomou conta de todos quando ela, de braços dados com o irmão, entrou na igreja. Me lembrei muito de meu tio Odair. Sempre gostei muito dele também. Era o tio mais animado, que mais promovia churrasco, que me levou pela primeira vez pra ver o mar. Minha mãe conta que meu tio adorava bagunçar comigo quando eu era bem pequeno, que uma vez, saiu escondido comigo da casa da minha avó e me levou ao barbeiro, e pediu que ele raspasse a minha cabeça. Chamava-o de Tio Dail hehe. Quando tinha festa na casa dele, brincava com meus primos no parquinho das Pitas, jogava vôlei, brincava na areia. Tive uma infância muito bonita na companhia deles. Nos reuníamos todo final de semana na casa de minha avó materna, a vó Maria. Saudades imensas dela, que nos deixou quando eu tinha 7 anos. Lembro dos cafés da tarde que tomava na casa dela. Tinha sempre, sempre, leite com café e pãozinho quente com manteiga. Molhava o pão no leite, ficava uma delícia. Até hoje quando faço isso, é impossível não me lembrar dela. Nos fundos da casa dos meus avós, tinha uma cerâmica, onde meu avô trabalhou a vida toda. Nosso quintal da infância era imenso. Tinha horta, jardim, muito morro pra subir, muita madeira pra inventar brinquedo, muito formigueiro, muito espaço pra deixar a imaginação correr solta. Lembro da gente saindo pra se esconder perto do forno, quando fazia algo de errado. Era perfeito pra brincar de esconde-esconde. O quintal pegava o quarteirão inteiro. Meus primos eram todos mais velhos que eu, 3,4 anos. Eles aproveitaram muito mais. Quando eu ainda queria brincar, eles já estavam pensando nas namoradinhas. Mas o tempo que aproveitei foi bom. Foram muitos natais lá, muitos aniversários. Era pequeno nessa época, lembro de pouca coisa, mas as fotos me remetem a muitos momentos. Lembro claramente da semana que minha avó faleceu. Não entendia muito bem o que acontecia, mas minha mãe estava em Ribeirão cuidando dela. Eu fiquei com as minhas tias e meus primos nessa semana, na casa da minha avó. Saía da escola e ia pra lá. Foi uma semana que passamos muita coisa juntos, Acho que nós no fundo, sabíamos que nunca mais iriamos ver a vó Maria. Depois, meu avô e minha tia Rita, a filha caçula que ainda morava com eles, se mudaram. Ela não teve tempo de estrear
a casa nova. Lembro que senti muito nessa época, quando pensava que nunca mais iria ver nosso quintal. Poderia até voltar a vê-lo, mas aí não seria mais nosso. Os natais e aniversários passaram a ser na minha casa. Era doloroso pra todos, e minha família demorou bastante tempo para se recuperar. Mas a minha infância continuou. Lembro de uma época em que a nossa mania, minha e a dos meus primos, era brincar com saquinho de pano com feijão. Lembro também da Aline brincando comigo de apresentadores de programa de fim de ano, e dos nossos arranca-rabos fenomenais que aconteciam no final das festas, da minha farra com a Andresa e o Juninho na praia, da paixão do Nivaldinho pelo Palmeiras. do Ricardo e do Rodrigo, meus primos gêmeos de Campinas que me levavam pra comer cachorro-quente gigante e depois pra passear no EXTRA de madrugada, da Fernanda gravando as trilhas de novela dela pra mim em fita k7, da Thalita, que chorava pra eu brincar com ela, e quando eu ia brincar, não deixava eu pôr as mãos nos brinquedos, todos eles fizeram parte lindamente da fase que tenho mais saudade de minha vida, quando ela parecia uma caixa de lápis de cor, e era só colorir. Hoje, passo na frente da casa onde meus avós moravam e as lembranças são inevitáveis. Outros moradores estão lá, a casa foi reformada, mas imagino o quintal igualzinho como era antes, e por isso, pra não mudar nada em minha memória, que não me atreveria a entrar lá hoje.
O casamento me trouxe todas essas lembranças. Fiquei muito emocionado e feliz
pela Andresa, a quem desejo muitas felicidades. Depois da igreja, o encontro familiar continuou na festa, que aconteceu em Santa Cruz das Palmeiras, cidade do Leandro, o noivo. Bebidinhas, comidinhas, e corta gravata, e joga o buquê. Estávamos todos muito felizes. Quando deu 1 e 15 da manhã, meus pais e eu fomos embora. Tinha combinado de ir na Lex Luthor, com o Che e o Maikinho. Sábado teve show do Armandinho. Cheguei em Tambaú, liguei para o Che, como tínhamos combinado, e ele foi me encontrar. Eles já estavam lá, e o show ainda não havia começado. Estavam também Éder e Neno. A noite foi divertidíssima. Rimos, brincamos, jogamos futebol com latinha de cerveja. Estava tudo certo, todo mundo se entendendo e sem nada pra atrapalhar,
pra quebrar o vínculo. Uma hora e meia de show que mal vi passar. Não conheço muita coisa do Armandinho e estava mais feliz por estar ali, com meus amigos, depois de uma noite também especial com a minha família. Bebi até além da conta mas estava muito feliz. Na hora de ir embora, no meu celular, tocava rock. Éder e eu subíamos quando, num momento de extrema animação e felicidade, comecei a dançar. Dancei muito na rua debaixo da minha casa, no chão
molhado. "Highway to hell", "You shook me all night long", "Satisfaction", essas músicas fizeram a trilha do fim de noite. Ajoelhei no chão e fiz guitarra na coxa, pulei, vibrei. Naquele momento, eu amei a vida, amei estar vivo, amei ser quem sou e ter o que tenho. Quis muito que a Lis e o Che estivessem comigo ali, naquele momento, curtindo essa onda. A farra acabou quando, na esquina da minha casa, vi uma luz vermelha refletida na parede, piscando. Era uma viatura da polícia. Pra não nos metermos em encrenca, ficamos de boa. Não importa se um dia eu for parar no inferno, dane-se. O fato é que faço o melhor possível para ser bom para as pessoas que merecem, para andar na linha segundo aquilo que Deus, meus pais, e a minha própria vida, me ensinaram. A gente não está aqui a passeio, tem que viver, aproveitar, fazer o que tem vontade, ser feliz, curtir as fossas também, de verdade. Não dá pra passar tudo em branco. Eu vou andar por toda a minha vida atrás do sol, como um pássaro gigante, grande, da cor do
mar. Isso é de alguma música bem antiga, mas cabe aqui agora. Isso já é algum tipo de salvação.
Domingo, ainda chovia. O almoço foi em família na casa de minha tia, com o pessoal de Campinas. Divertido! Depois em casa, falei com o Che e combinamos a saída da noite. Foi legal! Lis apareceu, não a vi no sábado. Éder e Maikinho também apareceram. Algumas reações ameaçaram a paz, algo não estava bem, mas como o mal parecia ter sido cortado pela raiz, achei que estava tudo bem. A noite no Mancha terminou ao som de "Como nossos pais", com Elis, e "Exagerado", do Cazuza, a música que definitivamente me define, explica meu ser. Jogado aos seus pés, com mil rosas roubadas, exagerado, Eu adoro um amor inventado. Nos despedimos. Tudo parecia ter sido perfeito. Rimos, nos divertimos, estava tudo pronto para eu enfrentar a semana numa boa, começar a segunda-feira com o pé direito e continuar o fluxo de boas vibrações. Mas, infelizmente, não foi bem assim que tudo aconteceu depois.

2 comentários:

Vampira Dea disse...

Que delicia de quintal! Gostei daqui e de como vc descreve suas dívidas e seu trabalho.Te desejo muito sucesso na nossa profissão deliciosamente difícil rsrsr.

Vampira Dea disse...

Errata rsrsr dúvidas